Feliz Ano Velho
Final de ano sempre traz esse impulso de olhar para trás, como quem vasculha os rastros deixados pelo tempo. O que ficou, o que doeu, o que valeu a pena, o que não valeu, o que dói, o que persistentemente continua doendo. 2024 foi um desses anos em que a dor teve muitas faces, mas todas com algo em comum: não houve como fugir dela.
Havia mais de um ano de espera pela cirurgia que eu achava que mudaria tudo. A esperança de que a endometriose daria uma trégua, de que eu conseguiria recuperar um pedaço de mim. Mas a dor se transformou, o pós-operatório foi horrível. Às vezes, a dor faz parte da jornada, e tentar já é vitória. Às vezes a gente se acostuma com ela.
Além de mim, minha família enfrentou outro tipo de luta, talvez mais feroz e cruel: a luta contra o câncer de minha mãe. Mais do que nunca, estive ao seu lado. Cada ida ao hospital, cada nova consulta, cada dúvida, cada medo… Era como se o tempo estivesse acelerando, como se estivéssemos semppre correndo e nunca fosse o suficiente. Cada dia ao seu lado, cada mão dada, cada abraço, foi um exercício de amor, sem perguntas. Só o amor, que se solidifica nas pequenas ações, na presença constante sob a esperança de melhora.
A vida não parou, e eu segui saboreando, inclusive, poderosas conquistas. Tirei minha carteira de habilitação, algo que pode ser banal para alguns, mas para mim foi um passo importante. Trabalhei na minha segunda campanha eleitoral em que passei noites acordada, mexi com ideias, com pessoas, e, principalmente, comigo mesma. Venci uma batalha judicial contra o convênio médico, que se recusou a atender a minha mãe num momento crucial, depois de mais de dois anos. Inscrevi-me para terminar a graduação no ano que vem, coisa que só consegui após muita luta. E, sim, também me apaixonei. Apaixonei-me por pessoas, por ideias, por sonhos que me fizeram flutuar — e, claro, por alguns que me derrubaram sem cerimônia. Projetei futuros brilhantes que evaporaram na luz do dia, tropecei em ilusões, desapeguei de certezas e, no meio do caos, encontrei pedaços de mim que nem sabia que existiam. Aprendi que há beleza no desmoronar, coragem em recomeçar, e que viver é, acima de tudo, lidar com a falta. Falta de respostas, de pessoas, de sonhos — mas também perceber que o vazio pode ser o começo de algo novo.
E então, teve o filme. “Ainda Estou Aqui”, que não é só sobre Rubens Paiva, mas sobre Eunice, sobre aqueles que ficaram, sobre os lutos que não se elaboram, mas persistem porque a vida, implacável, segue. No filme, o choro tímido de Eunice se mistura ao choro de todas as mulheres e homens que sobreviveram à ditadura, cujas vidas foram rasgadas, cujos direitos foram negados. É sobre a necessidade urgente de contar as histórias das torturas, das perdas, de tudo o que nos foi roubado. Porque, no fundo, é sobre amor, um amor que transcende o individual, que é coletivo, que nos diz que a dor que é vivida por um é também de todos.
E, naquele dia, ao ver o filme, me emocionar e chorar, foi como se tudo se condensasse. O mundo já tinha desabado, muitos sonhos e projetos estavam atrasados ou perdidos. Mas, naquela sala de cinema, chorando ao lado de estranhos, percebi o poder catártico da dor. As lágrimas não eram só pelo filme, mas também pelas minhas próprias perdas e silêncios. Era como se algo dentro de mim precisasse sair e continuar expelindo, fluindo. Uma forma de encarar tudo o que dói, o que falta solução, o que se perde — e ainda assim nos ensina.
2024 não foi o ano em que a dor desapareceu, mas foi o ano em que aprendi que ela pode ser vivida, chorada, enfrentada, e que isso, talvez, seja tudo o que precisamos para seguir em frente. Não fugir da dor faz doer menos. E, ao final, talvez seja isso o que nos permite dizer: feliz ano velho.